O anfiteatro estava já vazio quando levantei bruscamente a cabeça adormecida nos cadernos e descolei uma folha da bochecha. Estava atrasado para a aula seguinte. Entre uma espreguiçadela, dois bocejos e um limpar de ramelas, meti as canetas à boca, comprimi os livros debaixo do braço e apressei-me dali para fora. Estava com uma sede dos diabos, não resisti ao bar e fui encher um copo de água. Atrás de mim, na fila para a torneira pública, o meu antigo professor de Constitucional segurava num copo vazio.
- Olá, professor!
- Olá...
Não me importei que não se lembrasse do meu nome - quantos mais alunos teria ele tido com um nome igual ao meu? Bastou aquele sorriso timidamente escancarado, debaixo do mesmo nariz de há dois anos atrás, para adivinhar exactamente o que lhe ia na cabeça:
Ena pá, é bom ver-te! És o...? Desculpa, esqueci-me. Ainda és amigo do...? Desculpa, não decorei os vossos nomes, são tantos! É o problema desta faculdade, é ser demasiado grande. Às vezes perdemo-nos cá dentro. Conhecemos as paredes mas não conhecemos as pessoas. Ainda há pouco uma miúda assim da tua idade passou por mim no corredor e lançou-me um sorriso. Não percebi se era porque me tinha visto na televisão ou porque tinha sido minha aluna. Era muito bonita. Há raparigas muito bonitas, cá na faculdade. Estou a ficar velho... De qualquer forma, balbuciei umas quantas palavras desconexas numa língua arcaica que eu próprio desconhecia e sorri-lhe, simplesmente, assim como te sorrio a ti e a todos os que me sorriem, porque não quero parecer antipático. Não sou antipático, sou até um gajo muito porreiro. Tu lembras-te da minha piada do Presidente que nomeava o Melão primeiro-ministro, não te lembras? Essa era muito boa. Só me faltava um microfone e o som do baixo do Seinfeld para as minhas aulas serem espectáculos de stand-up. Já foi há dois anos, pá! Já foi há dois anos... Não quero ser o "senhor doutor", quero o meu passado de volta. Eu só uso gravata porque me diverte! Foi bom ver-te, foi mesmo bom ver-te...- Tudo bem, João?
- Tudo...
Por um momento desejei viajar no tempo, regressar aos dias em que tudo era mais simples, tudo menos calejado e um poucochinho mais virgem do que é agora. Voltar a entrar naquela faculdade pela primeira vez e fazer tudo de novo, tudo exactamente como fizera. E discutir pornografia governamental com o meu professor preferido.
Ao
PL.
JB