sexta-feira, novembro 24, 2006

Por um momento (VI)

O anfiteatro estava já vazio quando levantei bruscamente a cabeça adormecida nos cadernos e descolei uma folha da bochecha. Estava atrasado para a aula seguinte. Entre uma espreguiçadela, dois bocejos e um limpar de ramelas, meti as canetas à boca, comprimi os livros debaixo do braço e apressei-me dali para fora. Estava com uma sede dos diabos, não resisti ao bar e fui encher um copo de água. Atrás de mim, na fila para a torneira pública, o meu antigo professor de Constitucional segurava num copo vazio.
- Olá, professor!
- Olá...
Não me importei que não se lembrasse do meu nome - quantos mais alunos teria ele tido com um nome igual ao meu? Bastou aquele sorriso timidamente escancarado, debaixo do mesmo nariz de há dois anos atrás, para adivinhar exactamente o que lhe ia na cabeça:
Ena pá, é bom ver-te! És o...? Desculpa, esqueci-me. Ainda és amigo do...? Desculpa, não decorei os vossos nomes, são tantos! É o problema desta faculdade, é ser demasiado grande. Às vezes perdemo-nos cá dentro. Conhecemos as paredes mas não conhecemos as pessoas. Ainda há pouco uma miúda assim da tua idade passou por mim no corredor e lançou-me um sorriso. Não percebi se era porque me tinha visto na televisão ou porque tinha sido minha aluna. Era muito bonita. Há raparigas muito bonitas, cá na faculdade. Estou a ficar velho... De qualquer forma, balbuciei umas quantas palavras desconexas numa língua arcaica que eu próprio desconhecia e sorri-lhe, simplesmente, assim como te sorrio a ti e a todos os que me sorriem, porque não quero parecer antipático. Não sou antipático, sou até um gajo muito porreiro. Tu lembras-te da minha piada do Presidente que nomeava o Melão primeiro-ministro, não te lembras? Essa era muito boa. Só me faltava um microfone e o som do baixo do Seinfeld para as minhas aulas serem espectáculos de stand-up. Já foi há dois anos, pá! Já foi há dois anos... Não quero ser o "senhor doutor", quero o meu passado de volta. Eu só uso gravata porque me diverte! Foi bom ver-te, foi mesmo bom ver-te...
- Tudo bem, João?
- Tudo...
Por um momento desejei viajar no tempo, regressar aos dias em que tudo era mais simples, tudo menos calejado e um poucochinho mais virgem do que é agora. Voltar a entrar naquela faculdade pela primeira vez e fazer tudo de novo, tudo exactamente como fizera. E discutir pornografia governamental com o meu professor preferido.

Ao PL. JB

2 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Após ter tido a oportunidade de me debruçar atenciosamente sobre este texto, não poderia deixar de expressar o que senti aquando da sua leitura...Bom, em primeiro lugar, apraz-me confessar que ao início, nem estava a acreditar que te estavas a referir ao Dr.Pedro Lomba...esse senhor, meu Deus, poderíamos estar aqui algumas semanas a escrever textos acerca da sua pessoa e das suas aulas, que seria impossível retratar tudo aquilo que Ele proporcionou aos seus alunos, no âmbito do Direito Constitucional...De facto, fico deveras feliz por te teres lembrado, e acima de tudo pela consideração demonstrada, de aqui colocar um texto cujo tema é o carismático e emblemático PL, detentor de um porte humorístico alguma vez visto, e que conjugando as suas piadas com o seu nariz, ui parece, a fórmula perfeita da bomba atómica...é inexorável que apenas os seus ex-alunos compreendam esta admiração constante e o conteúdo destes textos, visto que quem nunca "privou" com este grande senhor do Direito Constitucional, jamais compreenderá do que se está aqui a tratar...Berhan, eu fui também um daqueles que teve o privilégio e a honra de ouvir, assistir e até mesmo rejubilar-me, com piadas do género "Melão primeiro-ministro" e "Bom, haveria uma grande susceptibilidade de se criar uma certa, pornografia governamental"...enfim, foram tantas e tantas, que eventualmente daqui a largos anos, suscitarão uns "Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Pedro Lomba" (isto se, PL efectuar com sucesso uma tese de doutoramento, o que, com muita convicção e veemência se espera)...reparei que fizeste questão em não mencionar a associação que foi posteriormente criada em redor do fenómeno Lomba...de forma iniludível te compreendo meu caro amigo, dado que se fizesses alusão à sigla em que se consubstancia a tal associação, muitas pessoas ficariam chocadas e até com "a pulga atrás da orelha" relativamente à tua simpatia sexual...enfim também não me cabe a mim revelar tal mistério, pelo que ficará em suspense...tentar descrever o conteúdo e a forma das suas piadas, seria totalmente absurdo, uma vez que é inexplicável o seu sentido de oportunidade, o ambiente criado intencionalmente mas de forma subtil no intuito daquela piada ser bem sucedida, enfim, muitas vezes a sua espontaneidade também a emergir de forma radical, ao ponto de fazer soltar o mais profundo riso às 9h00 da manhã...em jeito de conclusão, considero relevante referir que PL participa neste momento num programa televisivo cuja temática é a actualidade política...é, indubitavelmente, um reconhecimento do seu profissionalismo e faz jus à sua competência...contudo, é de louvar que a sua fama extra-FDL não o consumiu no seu todo, já que, de grosso modo continua a cumprimentar alguns dos seus ex-alunos com aquela sua timidez tao típica que quase parece transparecer algum nervosismo da sua parte ao mesmo tempo que aparenta querer dizer algo mas acaba sempre por não o fazer...Humildade, reserva, inteligência atípica, sabedoria, muitos conhecimentos acerca de TUDO, sentido de humor ímpar e bastante apurado, são algumas palavras que caracterizam este Senhor do Direito e que eu, Fernando Caetano, com muito gosto e muita honra tive o privilégio de ser seu aluno no 1o ano...

24 novembro, 2006 21:16
Blogger Sofia Paixão said...

Mal li este post senti uma urgente necessidade de o comentar e foi com agrado que constatei que não fui a única. Como fui da mesma turma que o JB no primeiro ano, tambem eu fui contagiada pela maneira de ser do Mestre PL (não esquecer este pormenor importante, que nos enche de orgulho e esperança que quiçá venha um Doutoramento). Inteligente, extremamente simpático, bem humorado e acima de tudo humilde, igual a si próprio, sem se deixar corromper pela fama de ser o tal "senhor doutor", detentor do poder de proporcionar gargalhadas de virem as lágrimas aos olhos: autenticas perolas humoristicas como o "croquete governativo", "a presidencia do conselho de ministros fica colado a um galinheiro", "a Teresa fica com o Peru", "espero que ninguém daqui seja da familia do Olavo Bilac" (a proposito da sua lista negra de pessoas) entre tantas outras perolas já aqui referidas. Ainda esta semana nos cruzámos, ele com o seu sorriso caracteristico, eu com uma vontade tremenda de ter continuado sua aluna em constitucional II ou em qualquer outra cadeira. O responsável por eu ter começado a gostar da Constituição "peguem nela com carinho, com amor, ponham na mesa de cabeceira". Se há Professores que nos marcam no nosso percurso académico, PL tem certamente um lugar de destaque. E por mais alunos que venha a ter, independentemente da memória começar a falhar a nossa cara e o nosso nome, sabemos que aquele sorriso vai aparecer em alguma esquina de um corredor da FDL, mais timido num programa de televisão, escondido no meio da sapiência em alguma prova pública, mas vai aparecer. E nós vamos continuar a segui-lo, com o mesmo entusiasmo de quando seguiamos as fases do procedimento legislativo (e gostávamos).

25 novembro, 2006 21:53

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