domingo, junho 03, 2007

O advogado José B. que queria cantar como o Jeff Buckley

- És um quase-quase, José B..
Parou para pensar na gravidade do que lhe tinha dito quando viu apagarem-se à sua frente os seus enormes olhos pestanudos. Reformulou que não era aquilo que queria ter dito, não daquela maneira - que não era necessariamente horrível ser-se quase-quase e que ele próprio, naquela idade, já tinha sido um.
- Deus deu-nos uma coisa tremenda, José B. - disse, chupando cavernosamente o cigarro que acendera - E essa coisa tremenda é a ambição.
José B., abalado, assentiu. Depois de uma adolescência dedicada inteiramente a destruir a sua Fé, tinha talvez agora arranjado um motivo forte para voltar a acreditar n'Ele: culpá-Lo pela sua pequenez. Achava aquela ideia, porém, demasiado incompleta. Pensava que Deus lhes tinha dado, não uma, mas duas coisas tremendas, tremendamente incompatíveis, só para lhes maçar o juízo. E essas duas coisas tremendas eram a ambição e uma vida pequena demais. Mas o outro continuava:
- Pensa comigo, José B., é bom ser um quase-quase... - e explicava-lhe que não era toda a gente que podia dizer que estava a acabar o terceiro ano do curso (José B. observava que com más notas), estudava música (José B. não considerava o que fazia um estudo), escrevia numa revista (José B. não lhe explicara ainda porque tinha deixado de escrever), jogava futebol e ainda tinha tempo para ter uma namorada. José B. não o corrigiu porque jogava mesmo futebol e gostava da ideia de ter uma namorada. Ela, a namorada, escusava de saber que o era.
- Adeus, José B., o quase-quase!
- Adeus, e ainda bem que sou um quase-quase! - suspirou por fim, das escadas, despedindo-se pela décima vez, ouvindo a "Whole Lotta Love" desaparecer com o trinco da porta. Percebeu, numa breve epifania, que o que ele queria mesmo era fazer uma peça de teatro sobre peças de fruta: escrevê-la e cantá-la e conseguir chorar em palco sem ter de olhar para os holofotes - e namorar para sempre uma menina gira, qualquer que ela fosse, muito loira e com olhos muito verdes, que roesse maçãs amargas a toda a hora e que não lhe desse demasiados cabelos brancos.
José B. não apanhou o autocarro e foi a pé, porque ouvira dizer que a guitarra às costas e os chinelos calçados lhe davam imensa pinta. E porque fazia de tudo para perder tempo e não estudar.

Lisboa andava florida de jacarandás naquele mês quente de Junho - e as miúdas, de braços salgados e areia nas sobrancelhas, perdiam o medo de andar à boleia no eléctrico.

José B. crescera e quase nada tinha mudado. O outro era amigo da família e vinha passar as tardes de sábado no jardim de casa dos seus pais. No escritório onde trabalhava tinha quase mais clientes do que os seus colegas, o que lhe chegava para arrendar um apartamento simpático com quase tantas assoalhadas como o do vizinho. Tinha quase os mesmos amigos que sempre tivera e que, como ele, quase se tinham esquecido das viagens que tinham feito. Ainda bebiam cerveja.
E Deus (em Quem, porque a sua mulher irresistivelmente lhe pedinchara, voltara a acreditar) dava-lhe ainda duas coisas tremendas. E essas duas coisas tremendas, tremendamente incompatíveis, eram o seu filho e uma guitarra eléctrica. JB

9 Comments:

Blogger Sofia Paixão said...

Podem dizer que o José B. é um quase-quase, mas eu aposto que aos olhos de quem realmente interessa de quase não tem nada. É um tudo. Que bom ler-te de novo... =) tantas saudades. Beijinho

03 junho, 2007 23:19
Blogger Navalha said...

se tu fores um quase-quase, e eu um quase-quase como tu (também desconfio que o serei, perigoamente), não há problema: pegamos um no outro e fazemos o tudo-tudo da vida que idealizámos para nós, entre os interalos de processo civil e obrigações, às quartas à tarde. pelo menos quando esses acordes soarem mais limpos, e o meu saxofone que ainda não tenho não desafinar.

belo texto, andrade.

03 junho, 2007 23:32
Anonymous Anónimo said...

Finalmente voltaste à carga!
Grande texto, embora muito pessimista, eu diria...porque acho que o José B. (quem quer que ele seja)deve ser muito mais que um quase quase..acho que é um tudo tudo a quem as coisas correm mal às vezes - afinal não correm a toda a gente?
Um grande beijinho Sr. João! Tinha saudades!

03 junho, 2007 23:36
Blogger Pedro Malaquias said...

Bom texto.

06 junho, 2007 01:44
Blogger maria said...

welcome back (e de que forma!):)
quase é uma palavra mto chatinha, bem irritantezinha...mas nem sempre má (ou sinónimo de menor valor).gostei mesmo (e não quase):p

06 junho, 2007 22:49
Anonymous Anónimo said...

Sofia, Marias, Pedro e Quico,

Bem hajam, sinceramente.

07 junho, 2007 01:53
Blogger JPC said...

Gostei, meu caro. Gostei...

07 junho, 2007 16:51
Anonymous Anónimo said...

O que vale é que o quase-quase é invenção de um nada quase-quase. E, depois, o quase-quase também pode ajudar, às vezes.
Lamento, mas o meu comentário mais inspirado já foi escrito há uma data de tempoe perdeu-se no labirinto do computador. Fica este só para dizer que gostei...
bjs
ABC

14 junho, 2007 14:10
Anonymous Anónimo said...

Nita,

Esse comentário chegou e sobrou. E agora que disseste que "tu casa es mi casa" lá para Agosto, cheira-me que vou usar a tua máquina de fazer waffles. Waffles! Adoro a palavra waffles! Beijinho

Jon,

Não, TU é que és boa pessoa. Sempre que precisares de um Assistente de Realização para o filme da tua vida, contrata-me. (I'm an ass...) Abraço

14 junho, 2007 14:31

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