quarta-feira, julho 20, 2005

Náufragas (dia 4, de noite)


- Karolina, onde estamos?! Não vejo nada!
A Natalia enroscava-se em mim e apertava-me o braço, assustada, cravando-me as unhas na pele. Abracei-a com mais força à volta do pescoço e senti-lhe as lágrimas na minha cara. Tentei acalmá-la com festinhas no cabelo.
- Não sei, Natalia. Tem calma, isto não há-de ser nada...
Não tinha grande convicção no que dizia. Tínhamos sido agarradas por alguém e carregadas às costas até ao que me parecia ser uma aldeia no meio da ilha. Estávamos fechadas dentro de uma cabana, às escuras, vendo sombras entre os troncos que compunham as paredes e ouvindo vozes sussuradas de homens, lá fora, à porta.
- A Carmen e as outras vêm buscar-nos quando derem pela nossa falta, não vêm?
- Vêm, de certeza, Natalia...
Também não acreditava no que acabava de dizer, nem pelos vistos acreditava a Natalia, que recomeçava agora a chorar. Os sussuros lá fora tornavam-se vozes, algumas delas mais exaltadas. Silêncio, por um momento. A Natalia apertou-me o braço com mais força e trincou-me o ombro. Ouvia dela pequenos gemidos intermitentes e assustados. Calma, Natalia... A porta abriu-se.
- Podemos?
Nenhuma de nós respondeu. A Natalia fechava os olhos, com medo. Eu olhava para a porta, com medo também. Um homem, espreitando primeiro, baixava-se para passar pela porta da cabana. Não lhe víamos a cara. Viámos apenas um vulto, a silhueta de um homem alto e forte, de cabelo comprido. Atrás dele, mais um homem entrava na cabana. Um terceiro passou a porta, com uma pequena tocha na mão que iluminou o interior da cabana.
- Não se assustem.
Quem falava era o do meio, o mais alto, que tinha entrado primeiro e que dava agora um pequeno passo em frente, cauteloso. Tinha uma voz grave e cavernosa, suave no entanto. Nem por isso ficámos mais calmas. A Natalia soltou mais um gemido, de olhos cerrados.
- Desculpem a falta de educação, não devíamos ter pegado em vocês daquela maneira. - olhou para a Natalia, encolhida e com o biquini desajeitado, as pernas sujas de terra - Desculpem se vos magoámos.
- Não nos magoaram. - disse eu, orgulhosa, sem saber bem porquê.
Sorriu levemente num suspiro e segredou qualquer coisa ao ouvido do homem à sua esquerda, sem a tocha, que saiu apressado, gritando pelos outros. Enquanto ouvíamos passos agitados fora da cabana, eu e o homem da frente olhávamo-nos. Não desviámos o olhar por uns longos instantes. Via nos seus grandes olhos negros e brilhantes qualquer coisa que me acalmava e dizia que ali, entre eles, estávamos seguras. Os outros acabavam de chegar.
- Jean-Pierre, a água...
- Dá-lhes, Rud.
Jean-Pierre... O primeiro a entrar, que tinha saído há pouco, trazia nos braços uma taça larga e funda de madeira, cheia de água. Ofereceu-nos, num gesto, aproximando-nos a taça. Não nos conseguimos mexer. Pousou-a calmamente aos nossos pés, sem nunca desviar o olhar de nós. Mesmo à nossa frente, de joelhos flectidos, víamos-lhe a cara meiga e a barba por fazer.
- Olá, sou o Rud. - disse, sorridente, estendendo a mão.
A Natalia, que me apertava agora o braço com menos força, estendeu-lhe timidamente a mão.
- Natalia! - soltei.
- Rud! - gritou o homem que segurava a tocha, atrás dele.
Ela olhou para mim, ele olhou para trás. Olharam depois um para o outro e recolheram as mãos.
- Bebam, é água. - disse, recuando.
Os outros entravam, um a um, pela porta rebaixada. Alinhavam-se encostados à madeira, do outro lado da cabana, sem nunca se aproximarem de nós. Eram nove ao todo. Como nós... Observavam-nos silenciosos. O Jean-Pierre, ainda a olhar-me, preparava-se para falar.
- Não estejam assustadas, por favor. Não vos queremos comer... Acreditem que isto é uma surpresa maior para nós do que para vocês. Vimo-vos chegar à ilha. Sabemos que naufragaram - parou por uns momentos, engasgado nas palavras - Sei que devia estar triste por vocês, mas não consigo deixar de estar contente por nós. Desculpem se não escondo o meu sorriso. É bom ver mais alguém ao fim de três anos...
- E meio... - corrigiu o homem da tocha.
- Ou isso, Benny. Três anos e meio... - olhou para o vazio em frente dele, de olhos arregalados e testa suada, os caracóis do seu cabelo a mexerem com a respiração forte. Inspirou fundo e soltou uma frase de dentro de si - Há três anos e meio que naufragámos.

***

Na praia, a noite ia já longa. Nove de um lado, nove do outro, homens e mulheres tentavam conhecer-se, dar um pouco de si uns aos outros. A Natalia dividia com o Rud uma garrafa de vodka e a taça de morangos que eles tinham trazido, sentados na areia molhada, mergulhando as pernas nas ondas. As outras, ao fundo, encostadas nas rochas, aqueciam-se com o fogo das tochas e aninhavam-se em grupos, com eles, indiscriminadamente, cobertas com mantas das cabanas.
Sentadas na areia, contava ainda à Carmen o que eles nos tinham dito quando sentimos tocarem-nos nos ombros.
- Vais beber isso sozinha?
O Benny sorria para a Carmen. Atrás dele, o Jean-Pierre mastigava qualquer coisa e olhava para a lua, que se punha, vermelha, no mar. A Carmen passou a garrafa para as mãos do Benny e esticou os braços. Ele ajudou-a a levantar-se e foram-se embora, ela apoiada nele, bebendo mais uns goles da garrafa e apalpando-lhe o rabo. Olhei para o Jean-Pierre.
- O que é que estás a comer?
- Não faço ideia. Queres?
- Não, obrigada.
Sentou-se ao meu lado e abriu a palma da mão.
- É um fruto qualquer. É bom.
Provei. Ouvi-o rir-se da cara que fiz. Sabe a... Bebi mais vodka para tirar o sabor do fruto da boca, enquanto ele se deitava para trás, a cabeça na areia. Olhava para o céu com os olhos brilhantes de há pouco.
- Fazes-me lembrar a minha namorada.
Senti o coração bater mais rápido e as mãos tremerem-me. Deixei de pensar por uns segundos.
- Karolina...
- Shh...
Beijámo-nos.

JB