sexta-feira, julho 08, 2005

Metafísica

Cheguei à paragem do autocarro. Olha, ela... Sentada de perna cruzada no banco da paragem, a rapariga com quem me costumava cruzar perto de minha casa olhava o vazio em frente, debruçada sobre nada, o queixo apoiado nas mãos. Éramos os únicos na paragem, à excepção de uma senhora adormecida e seus sacos de plástico, pelo que optei por ir sentar-me ali ao lado, no passeio. Tudo sujo! Encostei-me antes a um carro e fiquei a olhá-la.
Ela estava ali, do outro lado da cidade, à espera do mesmo autocarro que eu. Não sabíamos o nome um do outro, nunca nos tínhamos falado, nunca um "olá" nem sequer um aceno. Quando eu descia a rua, vinha ela a subir, quando eu subia, ia ela a descer. Cruzávamo-nos, olhávamo-nos, eu sorria, ela não. Sempre os mesmos olhos tristes.
Vestia uma saia verde comprida que voava com o vento leve que por nós passava. O cabelo louro ondulava, tocava-lhe a pele queimada. Abanava o chinelo pendurado no pé. Sentiu que eu a olhava, voltou-se e olhou-me nos olhos. Desviei o olhar, fingi cantar. Vi, de lado, que o chinelo lhe caía do dedo grande. Calçou-o de novo com o pé, ajeitando o cabelo atrás da orelha, sem nunca desviar o olhar de onde eu estava. Fiz-lhe frente e olhei-a também. Desviou o olhar. Um autocarro aparecia lá ao fundo.
- É o 38, dona... - dizia uma comadre, que entretanto aparecera, para a outra que dormitava.
Entrámos, eu a seguir a ela. Ela pediu bilhete e eu fui sentar-me nos bancos de trás. Vi-a agradecer ao motorista, picar o bilhete e sentar-se lá à frente, voltada para trás. Cruzámos os olhos de novo e desviámo-los mais uma vez. Olhávamos agora pela janela. O Jardim da Estrela, o Pedro Nunes, o Rato, a Braancamp, o Marquês, Picoas. Carregou no botão para sair, em frente ao palácio Sotto Mayor. Já? Pensei que morasses mais perto de mim. A porta abriu-se e ela saiu. Esperou que o autocarro andasse para olhar para dentro dele, pela janela. Olhámo-nos por fim. Carreguei no botão, ia sair a seguir.
Passando pelo Picoas Plaza, lembrei-me que era quinta-feira, que tocávam já as primeiras bandas que tinham sido seleccionadas. Para o ano somos nós... Entrei e espreitei pelo varandim. Já estão a arrumar, claro.... Saía, desapontado, a olhar para o relógio, quando choquei com alguém.
- Desculpe...
Ela outra vez. Olhou-me, surpresa, mexeu os lábios para falar, não disse nada e continuou a andar num passo descontraído. Ia para onde eu ia. Pela primeira vez, subia quando eu subia. Deixei-a ir à frente, dei-lhe espaço, fingi esperar alguém. Não tens pressa, tu. Vieste pelo caminho mais giro, com mais árvores. No fim da rua, antes de virar a esquina, olhou para trás e procurou os meus olhos. Desapareceu.
Para a próxima subo a rua contigo. Percebi, ao acordar, que tinha andado um quarteirão a mais, que tinha já passado a minha casa. Estúpido...
Nunca lhe vi o sorriso. É linda, assim. JB