quarta-feira, maio 04, 2005

Bacalhau espiritual

Nunca se deseja o que se pode ter, nunca se gosta do que se tem.

As pedras soalheiras de um caminho distante surgem-nos rudes e desagradáveis, assim que as vemos a um palmo de distância, dispostas sob os nossos pés descalços. A vida perde a graça se nos dizem que não morremos. A morte impossível e a vida depois da morte ganham então muito mais piada.

A vida é uma enorme tasca em que o prato do dia pouco varia. Aos poucos, esse enjoativo prato torna-se causa de azia.
Hoje há bacalhau à Braz!… mas tem muito ovo, faz mal ao fígado; o bacalhau com natas pareceria outrora uma boa opção mas já sei que vou encontrar espinhas encobertas no manto branco; as caras de bacalhau não têm nada que se coma; exageram sempre no azeite quando toca ao bacalhau à Gomes de Sá e o Bacalhau à Lagareiro não o como, já o vejo na lista desde miúdo; com broa, com grão, com todos, na açorda ou em pataniscas, o sabor é sempre o mesmo - só muda o acompanhamento.
O que eu queria era algo original, um bacalhau inédito, que desse alguma alegria e cor à lúgubre ementa! Já concluí, porém, que tal bacalhau não passa de um bacalhau espiritual - sempre idealizável, mas nunca alcançável.

Vivemos numa triste ditadura gastronómica que nos absorve e nos transforma em clientes autómatos - fanfarrões habituais, sem histórias novas para contar. Deixamo-nos levar na corrente salgada em que deixámos os bacalhaus e damo-nos por satisfeitos, ignorantes da doçura do inusitado.

É, de facto, a luta de uma vida, esta de combater a monotonia dos bacalhaus desenxabidos, sem graça nenhuma e de travo a pescada. BF/JB