quinta-feira, maio 25, 2006

Morangos com Açúcar, Pêra Doce*

“Os Morangos não são uma novela, os Morangos são um movimento!”

Ser morango não é pêra doce. Ser morango exige, antes de mais, fé. Vá lá, fé não exige, mas anda lá muito perto. Garanto pelo menos que exige uma valente pachorra – e verdadeiramente admiro quem a tenha – de esperar infinita e descaradamente por um casting de meio minuto.
Orgulho-me, hoje, de ali ter ocupado o meu metro quadrado, de ter dado a ideia de que queria aparecer na televisão. Não relevam os verdadeiros motivos que me levaram a lá estar (trabalho de repórter, suponhamos). Certo, como dois e dois serem quatro, é que estava lá.

Dez da noite em Carnide, junto à Casa do Artista. As portas para o casting abriam às nove da manhã. Um Nélson e um Zé Carlos, ali ao lado, apuravam quem tinha abdominais mais definidos. Era o Zé Carlos, garantia o próprio aos interessados na discussão. Que andava no ginásio há mais de dois anos, que sempre fizera desporto, que obrigava a mãe a cozer esparguete todas as noites. O Nélson, por outro lado, era praticamente mestre de taek-won-do e fartava-se de levar batatadas de indivíduos maiores que ele. Abstraí-me do debate a tempo de evitar o levantar das t-shirts, a pedido da bexigosa namorada do Zé Carlos.

Aproveitei-me do meu robusto e musculado metro e noventa e olhei à minha volta, procurando densidade populacional menos nipónica. Olha, uma nesga! Depois de doze pisadelas, duas caneladas, uma cotovelada e um gritinho, desembaracei-me da multidão e inspirei fundo. Interrompi o processo respiratório, sustive o ar nos pulmões enquanto o tubo de escape do 28 passava por ali e terminei com sucesso a expiração.
Analisei o quadro que se me afigurava. A fila alongava-se a perder de vista, serpenteava pelas árvores aprisionadas no passeio estreito e, dobrando a esquina, dava a volta ao quarteirão. No início da fila, junto aos portões, uma senhora nos seus sessentas era a atracção principal. Achei-lhe um piadão, toda despachada, a pôr-se ali ao fresco só para morder o ambiente. Conversava com quem a quisesse ouvir: “Maldita a hora em que pus aqui os pés! Eu, meu amor? Eu não vou fazer casting nenhum, que não tenho idade. Ah, mas a Matilde ainda vai ficar com o rapaz, que a outra não é boa peça. A minha neta é que está em casa, que tem aulas amanhã de manhã. Guardo-lhe o lugar. O pai dela, coitada da miúda, está nos Açores, e ela ficou a viver comigo ali em Campolide. De maneiras que eu vim para cá por ela para o pai não achar que lhe ando a cortar as pernas.”

Ouvir as deliciosas histórias daquela senhora despertou o meu lado compreensivo. Olhei para os corpos cansados da rapaziada à espera da abertura dos portões e deu-me para a metafísica.
A vida é simples nas novelas. Lá, nas novelas, faz sempre sol. Nas novelas as aulas acabam sempre de manhã e há sempre uma luz quente a espreitar pelas palmeiras do liceu, a convidar alunos e professores para um copo no bar da praia. Nas novelas não se estuda, queixa-se de que se tem de estudar. Os professores são pouco mais velhos que os alunos e as aulas duram geralmente 2 minutos. A rapariga das novelas é gira, mas não o percebe. No seu jeito desengonçado, está sempre perfeita e tem sempre um sorriso nos lábios. O rapaz também é giro – e sabe-o. Confiante e sorridente, “dandeia-se” no bar da escola e derrete os corações das personagens secundárias. Nas novelas há os bons e há os maus. Os bons ganham e os maus perdem. Uns maus tornam-se bons – porque aprenderam que não compensa ser mau. Outros não – e emigram. Nas novelas as histórias de amor são previsíveis, logo, perfeitas. O rapaz, apaixonado pela rapariga, convida-a para um sorvete à noite. Ela fala e ele ouve-a, porque a adora; ele fala e ela ri-se, porque ele tem piada. Atrapalham-se a falar, dizem coisas espontâneas ao mesmo tempo e descobrem que têm tudo em comum. Se começar uma tempestade tropical, é fácil, há sempre um abrigo – vá lá, o carro do rapaz, ali ao lado. Encharcados e a tremer de frio, tiram a roupa e beijam-se até os vidros do carro embaciarem.
Acordei com a conversa da senhora, aparentemente uma militante por causa alheia, que até tinha ido na semana passada à greve da GNR substituir o genro que estava no Algarve.

No caminho de regresso ao carro, enquanto pontapeava uma lata de Nestea amolgada, percorri novamente a fila e voltei a observar os jovens aspirantes ao estrelato. Talvez o que motive estes rapazes e raparigas não sejam a fama fácil, o dinheiro fácil, a vida fácil. Talvez não sejam os segredinhos entre carteiras a meio da aula de Matemática. Talvez os miúdos estejam, simplesmente, saturados. Talvez o que os motive não seja algo que os puxa, mas algo que os empurra. Não cheguei (como frequentemente não chego) a nenhuma conclusão.

Ser morango não é pêra doce. Ali ao longe, a meio da fila, um miúdo com pouco mais de dez anos abrigava-se atrás de uma árvore dos carros que passavam e, entalando-se no saco-cama, preparava-se para dormir.

* (Texto publicado na revista "Iuris Grafia", edição Janeiro, Fevereiro e Março 2006) JB

4 Comments:

Blogger O Gigante Egoísta said...

Li originalmente estes dois textos na revista da fdul. Estão bem escritos, fluentes, estruturados, desempoeiradamente leves, sem pretensiosimo além-moralismo de cabeleireiro. No entanto, quando acabei de os ler (a ambos) fiquei com uma sensação de falta de conclusão, de uma moral, de um final substancial e substanciado (faltaram as tais premissas para que chegasse harmoniosamente a uma conclusão silogística). Sei que há mais nos textos do que pura fruição estética, ou puro gozo, mas essa intenção nas entrelinhas não se delineia bem. Não me levem a mal, estou a tentar ser o mais construtivo que consigo. Aliás, diverti-me bastante ao lê-los e vou estar atento ao que se passar neste blogue. Quero apenas deixar um simples contributo.

Já agora: não és o JB que eu já vi centenas de vezes no jornal Público, na secção de perguntas aos traseuntes? =)

06 junho, 2006 00:58
Blogger Ponto Negro said...

Olá antinoo.
Antes de mais, agradeço sinceramente os elogios. A última pessoa que me mimou dessa maneira foi a minha avó.
Quanto à crítica, agradeço-a ainda mais sinceramente. Eu próprio já tinha percebido que os meus textos eram grande parte deles (tipo, todos eles) inconsequentes, que não levavam a lado nenhum, que, nas suas palavras, não tinham "premissas para que se chegasse harmoniosamente a uma conclusão silogística". Mas tenho evitado (inconscientemente, talvez) corrigir esse suposto defeito. Por três razões:

1) A última coisa que quero é chegar ao ponto em que acho que escrevo textos que tenham o oposto das qualidades que sugeriu que os meus textos tinham. Não quero ser nem pretensioso nem "empoeiradamente pesado", nem patusco nem "cabeleireiro além-moralista". E como geralmente não me demoro demasiado nos meus textos (vida de estudante de Direito assim o exige), não tenho pretensão de criar Doutrina. Sou exigente com o que faço - ou seja, se quisesse fazer um texto com mais substância, não o faria com ligeireza e de ânimo leve. E só tenho tempo para ser ligeiro e levezinho.
2) Dois ou três textos em que me decidi por uma estrutura um pouco diferente, em que tentei apresentar o meu ponto de vista de uma forma mais directa, expressando um "final substancial", concluindo-me por uma qualquer moral, sentido de existência ou convicção política, ou me perdi em discussões sem fim à vista (daquelas que até dá gozo ter com amigos chegados, não com anónimos e inconsequentes provocadores) ou perdi a vontade de escrever durante umas boas semanas. De resto, deixei claro neste meu texto que "não cheguei, como frequentemente não chego, a nenhuma conclusão".
3) Divirto-me (muito) mais quando escrevo baboseiras como as que escrevo e quando dedico fotografias de modelos semi-nuas à minha mãe.

(Note que as três razões que dei foram agora mesmo matutadas, facto pelo qual lhe agradeço mais uma vez a crítica que, vistas bem as coisas, acabou por me fazer pensar)

PS: sim, é verdade, sou eu. Não diria centenas, mas pelas minhas contas vou em quatro bitaites no "vox poppuli": sobre centros de saúde, sobre presentes de natal, sobre o trappatoni e sobre outro tema que agora se me esqueceu. É da memória de peixe.

JB

06 junho, 2006 17:43
Anonymous Anónimo said...

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19 julho, 2006 14:27
Anonymous Anónimo said...

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22 julho, 2006 20:19

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