quarta-feira, maio 24, 2006

Gincana Presidencial 2006
(Porque recordar é viver)*

“Desta vez a coisa rendeu!” pensava eu para os meus botões, enquanto num passo acelerado percorria uma Lisboa outonal. Talvez fosse pela crise, talvez pela sempre crescente taxa de desemprego, fosse pelo que fosse, para onde quer que se olhasse, via-se um candidato a candidato a nosso chefe de Estado. Um verdadeiro boom de individualidades com pouco mais para fazer. Nas bocas das estações de metro, ao lado dos vendedores de castanhas e comerciais da Netcabo, era quase certo encontrar um. E todos me pediam o mesmo: o meu gentil apoio por meio de uma assinatura. Tendo tempo e curiosidade, não raras vezes me deixava ficar para ouvir o que me tinham para dizer. Pregavam o fastio pelo sistema partidarizado e o estado decadente do país. A crise da segurança social. O aumento dos impostos. Tal era o tom pré-apocalíptico que, quando a profecia acabava, já estava deprimido. Nunca por muito tempo, felizmente, pois eles tinham sempre a solução. José Maria Martins, Carmelinda Pereira, Manuela Magno, Gonçalo da Câmara Pereira. Tudo se resumia a uma questão de escolha. Normalmente, era por esta altura que me lembrava que tinha o jantar ao lume, pedia desculpa e entrava no metro.

Entretanto, a grande questão da pré-gincana mantinha-se. Estariam as barritas Chocapic à altura do formato tradicional de pacote? Quanto a esta, a doutrina ainda diverge. Porém, o dia 20 de Outubro foi um marco decisivo de resposta à segunda pergunta que mais atormentava os portugueses: “Candidatar-se-ia Cavaco Silva à Presidência da República?”. Foi com metade de um país a olhar para ele que Cavaco pôs cobro à longa expectativa criada pelos media e se inscreveu na disputa, para deleite dos já concorrentes Mário Soares, Manuel Alegre, Jerónimo de Sousa e Francisco Louçã. A gincana presidencial podia agora começar.

Mário Soares, mais experimentado nestas coisas, foi o que mais cedo se adiantou nesta corrida de carácter excêntrico. Uma entrevista à TVI, em princípios de Novembro, foi quanto lhe bastou para assegurar aos portugueses que estava “bem da próstata e tudo”, enquanto apontava para a dita, tentando, deste modo, afastar as críticas insistentes de que já não caminhava para novo. Infelizmente, conseguiu desmentir-se nos restantes minutos da entrevista. Este momento bonito de televisão serviu, no entanto, para dar um cheirinho de como seria a sua prestação, nos meses seguintes. E não desiludiu. Soares fez tudo para tentar tirar votos a Cavaco, desde acusar os media de imparcialidade a favor de Cavaco até sugerir que a sua participação seria “atingida por intrigas”, e a cada ataque novo que perpetrava descia um degrau na escadaria do bom-gosto. Assim foi a sua gincana. Uma gincana demasiado focada em ataques pessoais a Cavaco “Alvo de Estimação” Silva, que mais tarde viria a dar lugar a uma “campanha afectiva”, como o próprio anunciou. Uma gincana em que o candidato de 81 anos, há 30 na política activa, lamenta “a ausência de renovação da classe política” e recusa, numa altura em que o nosso Estado já é inevitavelmente pós-social, “a ideia da falência do Estado social”. Uma gincana marcada por declarações verdadeiramente demonstrativas de uma falta de destreza mental requerida para a execução do cargo de chefe de Estado, como a associação de Ribeiro e Castro, líder do CDS-PP, ao Partido Socialista Europeu. Enfim, uma anti-gincana que se ia auto-desfazendo, sem que o PS, que a tinha apoiado, pudesse fazer alguma coisa para o contrariar. Juntemos a isto os cartazes maus demais do recém-criado MP3 - Mário a Presidente pela 3º vez - e o já velhinho slogan “Soares é fixe!”, para percebermos os resultados da noite eleitoral. Mas quanto a isso já lá vamos.

Importa agora falar um pouco do outro protagonista desta prova: Sr. Silva, na boca de alguns, Cavaco na da maioria. E que prova essa. Capaz de ensinar a arte da guerra ao próprio Sun Tzu, de tão calculista que foi. Gizada milimetricamente, desde a incerteza expectante a que levou o seu tardio anúncio de candidatura até à obstipação voluntária de ideias, que tinha o dom de deixar o eleitor confuso se elas ficavam retidas na fonte ou não existiam de facto, teve sempre por objectivo primacial a redução de discursos e debates aos mínimos sustentáveis. Cavaco tinha a consciência clara que os corações dos seus organizadores de campanha fraquejavam, sempre que se aventurava numa resposta mais longa aos jornalistas, temendo uma gaffe que lhe retirasse de uma golpada uma parte substancial dos 60% de intenções de voto, que uma chegada sebastianista ao panorama político nacional lhe tinha granjeado. Dir-me-ão: “Que raio de campanha!”. De facto. Mas a verdade é que, deste modo, Cavaco se poupou a momentos verdadeiramente embaraçosos, semelhantes aos de Soares, conseguindo assim levar uma corrida limpa, praticamente imaculada, embora aparentemente desprovida de substância. Aparentemente, sublinho. E já que falamos em participações desprovidas de conteúdo, passemos ao próximo concorrente: o Manuel alegre.

Manuel, insatisfeito com o candidato apresentado pelo seu partido e desejando restaurar ao país um pouco da glória lírica perdida desde as epopeias, começa a criar atrito dentro do PS, ao ponto de começar a incomodar José. Os amigos de José informam-no de que tem de fazer alguma coisa, face a este desafio à disciplina partidária. Quid Juris? José nada faz e Manuel concorre, à revelia do partido, à gincana presidencial. Seguindo uma lógica de independência partidária, que muito furor tem feito nos últimos tempos, Manuel inicia o que apelida de um “movimento de cidadania” e vai ganhando, aos poucos, os votos dos descontentes com Soares e com Cavaco, não obstante a mediocridade da sua própria prestação. E cada intenção de voto que ganha torna-o mais alegre e desinibido. E mais. E mais um bocadinho. Até que um dia dá por si proclamando, com voz grave e declamada, que só ele conseguiria derrotar Cavaco Silva, numa segunda volta. E a verdade é que iria estar muito perto disso.

O mesmo não se pôde dizer dos restantes concorrentes. Feita a triagem do Tribunal Constitucional, restaram dos iniciais onze apenas três: Jerónimo de Sousa, Francisco Louçã e o recém-aparecido Garcia Pereira, que finalmente conseguira ganhar alguns minutos de antena depois de se ter queixado a todas as entidades possíveis e imaginárias da onda de discriminação que os media lhe dedicavam.

Quanto a Jerónimo, uma retrospectiva dir-nos-á que perfez uma corrida acima das expectativas, embora bem longe dos lugares de topo, tendo conseguido mesmo alguns momentos de assinalável sucesso, de entre os quais recordo a enchente no Pavilhão Atlântico e também....portanto…aquele outro, mostrando-nos desse modo que “assim se vê a força do PC”, numa clara alusão à informatização global, que tantos postos de trabalho rouba aos operários portugueses.

Já a prova de Francisco Louçã prometia ser bem melhor do que veio a ser. Um bom primeiro desempenho nas entrevistas e debates televisivos tinha dado a esperança de que talvez fosse desta que o Bloco de Esquerda extravasasse o público-alvo 16-30 anos e conseguisse uns resultados eleitorais que impressionassem. Porém, um resto de gincana com as mesmas ideias de sempre, envolvidas no populismo habitual, foram suficientes para dissipar as dúvidas e remetê-lo para um desonroso penúltimo lugar, apenas à frente de…

Garcia Pereira. O único candidato não pertencente a um dos partidos “clássicos”, conseguiu com mérito, passar na primeira eliminatória do Tribunal Constitucional, e representar as cores do PCTP/MRPP no dito evento. Esforçou-se muito e, apesar de restos de farinha na cara, acabou a prova com um excelente aspecto, o que muito satisfez, por fim, a democracia portuguesa.

Durante meses tivemos de os ver todos os dias na televisão e, não vos escondo, houve tempos em que pensei desistir disto tudo e ir viver com a comunidade hippie de Katmandu. Porém, não o fiz. E é com orgulho que posso hoje, ao olhar para trás, afirmar, e citando Bryan Adams, “those were the best days of my life”, que é como quem diz “ricos dias de regozijo”.

Feitas as contas no final, os resultados eleitorais foram o reflexo da prestação de cada um dos atletas. Vitória de Cavaco à primeira volta com 50,6% dos votos, que demonstrou que é possível ser eleito Presidente da República sem dizer grande coisa, seguido de Manuel Alegre com 20,7% e de Mário Soares com 14,3%, a prova viva de que ainda vale a pena cometer harakiri aos 81 anos. Jerónimo de Sousa, Francisco Louçã e Garcia Pereira ficaram-se pelos 8,6%, 5,3% e 0,4%, respectivamente.

“E agora?”, deparava-se o cidadão mais preocupado. Como seria, a partir daquele momento, a relação entre Cavaco e Sócrates, a chamada coabitação? Os agouros embrulhavam o panorama político de forma cada vez mais apertada. Desde Jorge Coelho, quando Cavaco ainda nem candidato a candidato era, até Manuel Alegre, mais recentemente, prever um futuro negro para esse relacionamento tornara-se o lugar-comum de grande parte da esquerda portuguesa. Ora, na minha opinião, e de um ponto de vista monocromático, não sendo Sócrates de esquerda nem Cavaco de direita, só posso concluir que esta relação tem tudo para dar certo. Resta-me por isso desejar-lhes a continuação. A continuação.


* (Texto publicado na revista "Iuris Grafia", edição Janeiro, Fevereiro e Março 2006) BF

3 Comments:

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