sexta-feira, maio 05, 2006

Chico esperto

- Era um café e um pastel de nata, por favor.
- Sai uma bica e uma nata!
Sempre me havia fascinado o dialecto das pastelarias. Um pastel de nata era uma nata, uma sandes mista era uma mista, um café cheio era um cheio e uma meia-de-leite era, enfim, uma meia-de-leite. Dava-me, no entanto, a sensação de que o verdadeiro intento dos donos dos cafés não seria o da economia de palavras, mas antes o de mostrar ao cliente a sua abominável ignorância no que toca a pastéis. Afinal de contas, aquilo de trabalhar no ramo dos bolos desde mil nove e sessenta sempre dava direito a certos fait-divers.
- Ora aqui tem... - disse, pousando o pires e o prato no balcão.
- Tem canela?
Arregaçou as calças e levantou a perna, mostrando-me, orgulhoso, a sua peluda tíbia.
- Serve?
Achei-lhe piada, sinceramente, mas o dia ia já longo demais para esboçar um sorriso e as coisas não me andavam a correr de feição. O empregado, visivelmente desiludido com a falta de élan provocado pela graçola, lá me chegou a canela-condimento.
Como lhe poderia eu explicar que, naquele dia, entre três notas de testes eufemisticamente menos boas, tinha tido tempo ainda de ouvir coisas como "era suposto despejarem tudo o que sabiam sobre esta matéria" e "não havia cotação para a chico-espertice de escrever sobre o que não lhes era pedido", sem forças sequer para questionar o seu antagonismo? Chico-espertice? Chico-espertice tem o senhor, ouviu? Chico esperto é este homem à minha frente, que me mostra a canela enquanto como um pastel de nata! Eu, de chico esperto, não tenho nada! Nem de chico, nem de esperto. Hoje sou muito burro. Hoje acordei duas horas mais cedo do que devia porque me esqueci de que a aula tinha sido desmarcada. Hoje perdi o autocarro porque não tinha nem passe, nem bilhete, nem dinheiro e não encontrei um multibanco num raio de três quarteirões. Hoje passei por filantropo e fiquei feliz por provocar um sorriso a alguém neste mundo quando me enganei a preencher o número de telefone ao carregar o telemóvel. Hoje tropecei numa pedra da calçada à frente de um grupinho de raparigas do liceu. Hoje... Acordei com o som das buzinas e de um carro que travara a fundo no cruzamento. Estava já atrasado, meti metade do pastel de nata na boca e empurrei-o com o fundinho do café.
- Depois dava-me um copo de água, se faz favor.
- Um copo de água ou um copo com água?
Deixei uma nota no balcão e fui-me embora. JB

5 Comments:

Blogger Pedro Malaquias said...

Nulo ou Anulável? Os dois é que não.. belo assistente que vocês têm.

05 maio, 2006 18:24
Blogger Navalha said...

o festas é uma máquina.

05 maio, 2006 19:12
Anonymous Anónimo said...

e com tudo isto consigo ainda achar que es inteligente!!ena ena!:) gosto mesmo do que escreves!tenta so mesmo, duma proxima vez, nao tropeçar em frente das meninas, que isto de fazer figura de parvo a frente das moças, nao da...

06 maio, 2006 13:47
Anonymous Anónimo said...

estas crónicas de portugalidade lidas em Dili têm outro sabor!
"Era uma nata, sff..."

08 maio, 2006 01:42
Anonymous Anónimo said...

Greets to the webmaster of this wonderful site. Keep working. Thank you.
»

19 julho, 2006 14:27

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