sexta-feira, dezembro 22, 2006

Armenian Rhapsody*

Desliguei o carro. Ali, naquele parque de estacionamento à beira do rio, estava sozinho com o vento e com a voz do Marvin Gaye que vinha do carro ao lado. Olhei pela janela. Não estava uma noite particularmente fria, pelo que não cheguei a perceber porque carga de água os vidros daquele Nissan Micra vermelho embaciavam. Senti uma ligeira corrente de ar e lembrei-me do aviso da minha mãe – que não fosse assim para a rua, que levasse agasalho, que aquele vento dava cabo da garganta. Vesti a camisola, dei à manivela para fechar a janela e liguei o rádio. “Lets’s get it on... Whoa! Let’s get it on!” Ao que parecia, também no carro ao lado estavam a ouvir a marginal. Tirei o CD do porta-luvas.
Welcome to the soldier side, where there’s no one here but me. People all grow up to die... There is no one here but me”.

Já não me recordava há quanto tempo tinha passado para o lado deles. Há muito, com certeza – o tempo suficiente para não me recordar. Lembrava-me, isso sim, da primeira vez que me tinham perguntado o porquê de gostar tanto de System of a Down, se não apreciava por aí além bandas aparentemente semelhantes.
- Meu, System, brutalíssimo, naquela, grandes mamados, curtes Slipknot? E Maiden?
- Bom, digamos que System está para o pesto assim como Iron Maiden está para a vinha de alho. São ambos pastosos e vêm em frascos parecidos. Mas é só.

Everybody’s going to the party have a real good time”. Parei de tocar bateria no volante e no tablier quando me lembrei de que eu era o único gato pingado que não tinha ido à festa porque já tinha “coisas combinadas” e estava com “um torcicolo daqueles”. A verdade é que o meu pescoço nunca tinha estado em tão boa forma e a “coisa combinada” era precisamente aquilo, ouvir a minha banda preferida com o Tobias, o meu peluche, no lugar do morto. Mudei de música. “My cock is much bigger than yours!” Não percebi porque raio alguém escreveria uma música sobre galos, mas ali estavam eles a garantir-me que o deles era muito maior do que o meu. Em todas as músicas, aqueles quatro rapazes arménios pareciam querer dar-me algum recado, uma qualquer mensagem subliminar escondida naqueles deliciosos versos. Acabei por me conformar com a ideia de que o que eles queriam mesmo dizer é que o Danny e a Lisa os levavam para os sítios mais estranhos, onde gonorreia e gorgonzola eram uma e a mesma coisa, onde uma mesa para dois os esperava com amoras doces, onde o teu afilhado pudesse comer toda a relva que desejasse mas não chegasse a comer o peixe, onde os rapazes fizessem questão de usar um vestidinho de vez em quando e onde, enfim, todos aprenderíamos a derrota com pêgas de maus pés – e que nada disto era uma metáfora ao amor ou ao sexo.

A verdade é que não era fácil definir os System of a Down. Banda de metal? Segundo os próprios, essa era apenas mais uma das cores que utilizavam nessa arte plástica que, a par do futebol, é a música. Era simplesmente demasiado redutor pensar em System nesses termos. O vocalista Serj Tankian forrara as paredes da sua sala-de-estar com uma impressionante colecção de CD’s. De jazz. Daron Malakian, o guitarrista, enquanto se confessava sincero admirador dos talentos de Britney Spears, percebia que tinha formado a primeira banda que conseguia ser “agressive and poppy” ao mesmo tempo, mas não ao jeito de James Blunt, que também é agressivo de se ouvir. Enfim, a minha vontade de dançar disco todo nú na Kapital de cada vez que ouvia a extremamente dançável “Bring Your Own Bombs” e aquele gritinho étnico de Serj, importado das extintas tribos nómadas da Ásia Menor e respectivos rituais de iniciação à prática do arco e flecha a cavalo, denunciavam uma banda que, nas eloquentes palavras do baterista John Dolmayan, “doesn’t sound like anyone else. I just consider us System of a Down”. É nesta rapsódia de sons e cores e sabores e papaias que se percebe uma banda que, segundo Daron, foi formada “just to show people, «look, not everything has been done before»”. Afinal de contas, não era preciso adorar satan, matar os pais e/ou desenhar uma lágrima ao canto do olho para se gostar de System of a Down.

Agora, no carro, tentava arranjar uma ligação qualquer entre System, Slipknot, natas para bater e molho béchamel, mas distraí-me com o carro do lado. Aparentemente, quem quer que estivesse dentro daquele Micra era fã dos arménios. Pelo menos a suspensão balançava ao ritmo do baixo de Shavo Odadjian. Sempre me disseram que temos de ser uns para os outros, pelo que decidi pôr o volume no máximo. “It’s a violent pornography, choking chicks and sodomy...
- Colega, importa-se de pôr isso mais baixo?
O vasto símio surpreendeu-me de cuecas e meias à janela, arfando. Confesso que fiquei contente por ter encontrado um colega e por partilhar aquele horário de expediente com alguém.
- Peço imensa desculpa.

Desliguei o rádio e observei o meu colega a dirigir-se em esforço para dentro do seu bólide, a voltar para os braços da amiga que espreitava pela porta entreaberta. Coitados, se calhar estão em viagem e querem dormir. Liguei o rádio outra vez e pus o volume assim mais baixinho, numa música assim mais calminha. “Such a lonely day... And it’s mine, the most loneliest day of my life.” O pleonasmo não me pareceu redundante. Fechei os olhos, encostei o banco para trás e continuei a ouvir. “Such a lonely day... Should be banned. It’s a day that I can’t stand.” Reparei no sentido de humor que há muito apregoava àqueles rapazes e percebi porque razão diziam que as suas músicas mais tristes eram, invariavelmente, as mais engraçadas. “And if you go, I wanna go with you. And if you die, I wanna die with you.

Acordei com o sorriso babado com que adormecera. O relógio marcava já uma hora que podia muito bem pertencer a outro fuso horário, o Nissan Micra vermelho já lá não estava e a música era já outra. “I’m just sitting in my car and waiting for my girl.” Ainda pensei em ir ter com o resto da malta, beber umas cervejas, mas continuei ali sentado, no carro que não tenho, à espera da minha miúda.



* (Texto publicado na revista "Iuris Grafia", ed. Outubro, Novembro, Dezembro '06) JB

2 Comments:

Anonymous Anónimo said...

lembrast qnd me mandast este texto?!gostei!mto!

23 dezembro, 2006 10:17
Blogger rita said...

Bah, falta o verde alface. :|

23 dezembro, 2006 16:49

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