quinta-feira, outubro 13, 2005

Cicatrizes

Subindo a Avenida da Liberdade, olho-me no reflexo da vitrine da Louis Vuitton e contemplo o suicídio. Observo a Uma Thurman, ali ao meu lado, e reformulo. Talvez não... Coço a barba que não tenho e sinto um ardor no dedo. Ainda? Há uns dias cortara o mindinho com a faca do pão enquanto fatiava uma bolinha para fazer torradas. Lembrava-me de gritar "merda!", de abrir a torneira e de ensopar o pão em água e sangue.
Na semana anterior não tinha sido aceite para tocar guitarra no café da esquina. Porque era muito novo, porque não podia competir com o brasileiro que faz daquilo vida, porque ainda por cima o tipo distribui panfletos aos turistas na Baixa.
Na noite passada uma miúda lindíssima dera-me tampa. Porque sabe que é linda, respondeu-me com seis sílabas secas e um esgar e foi dançar com as amigas, divertida.
Hoje, de tarde, percebi que algo se passava comigo quando, ao ver com a minha irmã o final do Sexo e a Cidade, chorei.
Agora, com a prenda da Joana na mão (uns sushis que orgulhosamente comprara num take-away mas que se revelavam inúteis porque, afinal de contas, o jantar era só depois de amanhã), olhava-me de novo na montra, mais triste que macambúzio, reflexo cinzento e sem brilho, à excepção dos olhos húmidos do frio e das lágrimas. Esfreguei os braços, desci as mangas da camisola e continuei caminho. Mais uns quarteirões...
Do Tivoli ao Marquês, percebo que a vida é mesmo feita de pequenos nadas, que a vida é simples, que a vida é isto. Sinto novo ardor no mindinho enfermo. É isso!
A vida é um dedo mindinho. Às vezes, se não temos cuidado, cortamo-nos. Quanto mais fundo o golpe, mais ele sangra, mais ele dói e mais tempo demora a sarar. Se a tratarmos bem, a ferida estanca e sara, e se por sorte o golpe não for muito fundo, não deixa cicatriz. Se o golpe for fundo mas tratarmos bem dele, deixa uma cicatriz da qual nos orgulhamos, uma cicatriz que exibimos vaidosos. Se nos esquecermos da ferida, no entanto, por muito pequena que seja, acaba por infectar.
O bom dedo mindinho não é nem o imaculado nem o que tem medo de se cortar. O bom dedo mindinho cortou-se e curou-se, sangrou e estancou, fez da ferida cicatriz. O melhor dedo mindinho...
Acordo. A ferida abrira, sangrava outra vez. Merda! Chupo o dedo para estancar. Vai deixar cicatriz. JB