segunda-feira, julho 25, 2005

O Enviado

Rex, o cão polícia, mostrava-me as ruas de Viena, enquanto perseguia mais um fora-da-lei. Os meus olhos seguiam-no, levianamente, desligando-se de um cérebro ainda em aquecimento. Devia ser ainda uma hora da tarde e eu tinha acabado de acordar.
Anestesiado pelo ruminar dos cereais mastigados, dei por mim a pensar que fazia sentido Rex ser um pastor alemão. Afinal a série passava-se em Viena. Dentro do reich, portanto. O cão devia ser o rosto alemão. Perdia-me nas origens do bicho, quando o Processador de Memória me informou que também lhe chamavam Lobo da Alsácia. Ao cão, entenda-se. «Hmmm». Entrei outra vez naquele leve triturar de informação crocante que me entorpecia. O movimento maxilar mecânico embalava-me com as imagens de um cão comissário.
«Mas...?».
De repente tudo parou! O movimento cessou, o cerébro conectou-se e algo lá dentro carburou. Pouco depois eram lidas as primeiras páginas do relatório "Alsácia". «Alsácia, província francesa de fronteira onde Strasbourg é...». Ainda o chefe do Departamento de Informação não tinha acabado de proferir a primeira frase, quando o Processador Central encontrou uma falha nos dados. As primeiras palavras comprometiam a segurança do sistema! Uma acção de emergência era necessária.
Já se ouviam as primeiras explosões no perímetro exterior, quando o Enviado chegou ao sector vocabular. Limpava o suor da cara, à medida que analisava a informação expelida pelo computador. Não podia ser! Havia sido detectada uma incompatibilidade na sinonímia dos termos "Pastor alemão" e "Lobo da Alsácia". Não, o Processador Central não o permitiria! Como é que ninguém se tinha apercebido da falha? O Enviado tinha uma ideia dos (ir)responsáveis: «os Serviços de Supervisão...». As paredes coruscavam à sua volta. Não tinha tempo para se preocupar com culpados agora. Esta era a maior bronca com que se deparara desde que estava naquelas funções. E tinha de a resolver. O dilema encurralava-o de forma impiedosa. Ou separava os dois termos ou o pastor alemão não o poderia continuar a ser. Ele, que ainda há pouco tempo era sub-secretário do chefe adjunto da Informação, era agora chamado a tomar uma decisão desta magnitude. O desespero escorria-lhe pelo corpo e os segundos fugiam-lhe. «Pré-processo de emergência iniciado...». O Processador Central informava-o do início da contagem decrescente. Uma acção de emergência traria consequências trágicas. E ele sabia-o melhor que ninguém. Tinha integrado o projecto que criara o Processo. Uma decisão iluminou-o, por fim.
A necessidade aguçara, num último esforço, o engenho do jovem e magro agente. E quão magro ele parecia agora, com as sombras e o brilho das faíscas ocasionais na cara. Tinha de separar os termos. Era isso! Implicava uma redefinição dos dados fixos, ele sabia-o, mas era o procedimento possível e o único que não comprometeria a futura estabilidade do sistema. Limpou a testa com a manga da camisa e preparou-se para inserir a informação no terminal. As palavras formavam-se rapidamente no ecrã à sua frente, acompanhando o passo da contagem. «59, 58, 57...». O Processador Central dava agora sinais de reacção. «Alterações aceites... a carregar... por favor espere». Não há tempo! «45, 44...». A face do Enviado fechara-se. Era uma pessoa diferente, a que estava agora em frente do terminal. O imberbe simpático que um dia tinha servido cafés no Departamento de Informação desaparecera. No seu lugar, de olhos brilhantes, corrompia-se um homem a quem tinha sido dado muito poder. O telefone ao seu lado tocou. «...o calor... rápido...». Os gritos das pessoas no outro lado da linha entrecortavam-se com as explosões e tornavam a voz ténue do Chefe Supremo difícil de ouvir. «...por favor... consegue-nos ajudar?». Os olhos brilharam-lhe ainda mais. «Se consigo? Por um preço tudo se consegue.»
BF